quinta-feira, 19 de junho de 2008

Fazer nada


Rubem Alves


A manhã está do jeito como eu gosto. Céu azul, ventinho frio. Logo bem cedinho convidou-me a fazer nada. Dar uma caminhada – não por razões de saúde, mas por puro prazer. Os ipês-rosa floriram antes do tempo – vocês já notaram? E não existe coisa mais linda que uma copa de ipê contra o céu azul. Cessam todos os pensamentos ansiosos e a gente fica possuído por pura gratidão de que a vida seja tão generosa em coisas belas. Ali, debaixo do ipê, não há nada que eu possa fazer. Não há nada que eu deva fazer. Qualquer ação minha seria supérflua. Pois como poderia eu melhorar o que já é perfeito?

Lembro-me das minhas primeiras lições de filosofia, de como eu me ri quando li que, para o Taoísmo, a felicidade suprema é aquilo a que dão o nome de Wu-Wei, fazer nada. Achei que eram doidos. Porque, naqueles tempos, eu era um ser ético que julgava que a ação era a coisa mais importante. Ainda não havia aprendido as lições do Paraíso – que quando se está diante da beleza só nos resta... fazer nada, gozar a felicidade que nos é oferecida.

Queria perguntar aos ipês das razões do seu equívoco. Será que, por acaso, não possuíam uma agenda? Pois, se possuíssem, saberiam que a floração de ipê está agendada somente para o mês de julho. Qualquer um que preste atenção nos tempos da natureza sabe disto. Mas antes que fizesse minha pergunta tola ouvi, dentro de mim, a resposta que me dariam. Responderiam citando o místico medieval Angelus Silésius, que dizia que as flores não têm porquês; florescem porque florescem. Pensei que seria bom se também nós fôssemos como as plantas, que nossas ações fossem um puro transbordar de vitalidade, uma pura explosão de uma beleza que cresceu por dentro e não mais pode ser guardada. Sem razoes, por puro prazer.

Mas aí olho para a mesa e um livro de capa verde me lembra que não vivo no Paraíso, que não tenho o direito de viver pelo prazer. Há deveres que me esperam. O que todos pedem de mim não é que eu floresça como os ipês, mas que eu cumpra os meus deveres – muito embora eles me levem para bem longe da minha felicidade. Pois dever é isto: aquela voz que grita mais alto que as minhas flores não nascidas – os meus desejos – e me obriga a fazer o que não quero. Pois, se eu quisesse, ela não precisaria gritar. Eu faria por puro prazer. E se grita, para me obrigar à obediência, é porque o que o dever ordena não é aquilo que a alma pede. Daí a sabedoria de dois versos de Fernando Pessoa. Primeiro, aquele em que diz: Ah, a frescura na face de não cumprir um dever! Desavergonhado, irresponsável, corruptor da juventude, deveria ser obrigado a tomar cicuta, como Sócrates! Não é nada disto. Ele só diz a verdade: só podemos ser felizes quando formos como os ipês; quando florescermos porque florescemos; quando ninguém nos ordena o que fazer, e o que fazemos é um filho do prazer. E o outro verso, aquele em que diz que somos o intervalo entre o nosso desejo e aquilo que o desejo dos outros fez de nós.

No meu livro de capa verde estão escritos os desejos dos outros. Ele se chama agenda. Os meus desejos, não é preciso que ninguém me lembre deles. Não precisam ser escritos. Sei-os (isto mesmo, seios!) de cor. De cor que dizer no coração.

Aquilo que está escrito no coração não necessita de agenda porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno. Se preciso de agenda é porque não está no coração. Não é o meu desejo. É o desejo de um outro. Minha agenda me diz que devo deixar minha conversa com os ipês para depois, pois há deveres a serem cumpridos. E que eu devo me lembrar da primeira lição de moral ministrada a qualquer criança: primeiro a obrigação, depois a devoção; primeiro a agenda, depois o prazer; primeiro o desejo dos outros, depois o desejo da gente. Não é esta a base de toda vida social? Uma pessoa boa, responsável, não é justamente esta que se esquece dos seus desejos e obedece os desejos de um outro – não importando que o outro more dentro dela mesma?

Ah! Muitas pessoas não têm alma. O que elas têm, no seu lugar, é uma agenda. Por isto serão incapazes de entender o que estou dizendo: em suas almas-agendas já não há lugar para o desejo. No lugar dos ipês existe apenas um imenso vazio. Há um vazio que é bom: vazio da fome (que faz lugar para o desejo de comer); vazio das mãos em concha (que faz lugar para a água que cai da bica); vazio dos braços (que faz lugar para o abraço); vazio da saudade (que faz lugar para a alegria do retorno).

Mas há um vazio ruim que não faz lugar para coisa alguma, vazio-deserto, ermo onde moram os demônios. E este vazio, túmulo do desejo, precisa ser enchido de qualquer forma. Pois, se não for, ali virá morar a ansiedade.

A ansiedade é o buraco deixado pelo desejo esquecido, o buraco de um coração que não mais existe: grito desesperado pedindo que desejo e coração voltem, para que se possa de novo gozar a beleza da copa do ipê contra o céu azul. Tão terrível é este vazio que vários rituais foram criados para exorcizar os demônios que moram nele. Um deles é a minha agenda – e a agenda de todo mundo. Quando a ansiedade chega, basta ler as ordens que estão escritas, o buraco se enche de comandos, e se fica com a ilusão de que tudo está bem. E não é por isto que se trabalha tanto – da vassoura das donas de casa à bolsa de valores dos empresários? São todos iguais: lutam contra o mesmo medo do vazio.

“E vós, para quem a vida é trabalho e inquietação furiosos – não estais por demais cansados de viver? Não estais prontos para a pregação da morte? Todos vós para quem o trabalho furioso é coisa querida – e também tudo o que seja rápido, novo e diferente – vós achais por demais pesado suportar a vós mesmos; vossa atividade é uma fuga, um desejo de vos esquecerdes de vós mesmos. Não tendes conteúdo suficiente em vós mesmos para esperar – e nem mesmo para o ócio” (Nietzsche)

Por isto ligamos as televisões, para encher o vazio: por isto passamos os domingos lendo os jornais (mesmo enquanto nossos filhos brincam no balanço do parquinho), para encher o vazio; por isto não suportamos a idéia de um fim de semana ocioso, sem fazer nada (já na segunda-feira se pergunta: “E no próximo fim de semana, que é que vamos fazer?”); por isto até a praia se enche de atividade frenética, pois temos medo dos pensamentos que poderiam nos visitar na calma contemplação da eternidade do mar, que não se cansa nunca de fazer a mesma coisa.

Certos estão os taoístas: a felicidade suprema é o Wu-Wei, fazer nada. Porque só podem se entregar às delícias da contemplação aqueles que fizeram as pazes com a vida e não se esqueceram dos seus próprios desejos.


In: "O retorno e terno", 2003

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

teste de filme

teste

fim do teste
mais um

finish

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

teste

teste de video fim

fim

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais (Nelson Motta)

Frasinhas só pra dar um gostinho:

“...as palavras que saíam da boca de João eram como seixos que vinham rolando e rolando por um rio até se tornarem redondos e lisos, até virarem música.”

“...parecia um sonho dentro de outro, dentro de outro.”

“...foi amor à primeira mordida.”

“...agradou a gregos e baianos.”

“Eu tinha 22 anos e não sabia bem o que estava escrevendo mas, com a mesma idade, Elis sabia muito bem o que estava cantando e só aí entendi o que eu mesmo estava querendo dizer.”

“Não foi só minha mãe que chorou.”

“Na Itália, Chico comeu a pizza que o diabo amassou.”

“...onde se reuniam os artistas e intelectuais, a intelligentzia carioca (e também alguma burritzia rica).”

“...era tarde demais: o bem já estava feito.”

“...músicas tocadas por músicos que não sabem tocar e cantadas por cantores que não sabem cantar, para um público que não sabe ouvir.”

“...sereno como quem sabe, alegre como quem aceita...”

“‘Cada minuto que passa é um milagre que não se repete’ Rádio Relógio Federal” [citado por Dorival Caymmi]

“...saboreei a vingança como uma goiabada...” [adorei... e olhe que eu nem gosto de goiabada]

“...as mesmas forças políticas que estavam (sempre estiveram e continuariam) no poder.”

“’O amanhã é hoje...’”

“...sotaque recifo-parisiense” [de Guel Arraes]

“’A melhor maneira de conhecer Nova York é de maca.’” [Tom Jobim, citando Fernando Sabino]

“Abri os trabalhos. Que trabalhos?”

“Decidi pôr em prática o estrito conceito publicitário gilbertiano: ‘Informar as pessoas interessadas’.”

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Cambre

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Closer

_ Eu não como peixe.
_ Por quê?
_ Peixes fazem xixi no mar.
_ Crianças também fazem xixi no mar.
_ Eu também não como crianças.

_ O que você fazia em NY?
_ Eu era stripper.
_ (silêncio)
_ Olha o seu olhar...
_ Eu não posso ver meu olhar.

_ Qual seria o meu eufemismo?
_ "Ela era desconcertante".
_ Isso não é um eufemismo.
_ É sim.

_ Você o deixou assim?
_ É o único jeito de se deixar alguém. "Eu não te amo mais, adeus".
_ E se ainda amar?
_ Então eu não o deixaria.
_ Você nunca deixou alguém que ainda amasse?
_ Não!

_ Se incomoda se eu fumar?
_ Se você faz questão...
_ Não faço.
_ Então não fume.

_ Tem filhos?
_ Não.
_ Gostaria de ter?
_ Sim, mas não hoje.

_ Eu não beijo desconhecidos.
_ Eu também não.

_ Eu preciso vê-la.
_ Azar o seu.
_ Você me beijou!
_ Você tem 12 anos?
_ Você destruiu a minha vida!
_ Você se recupera.

_ Faz um ano que não te vejo.
_ Você me viu sim, mas só porque fica me espiando em frente ao meu estúdio.
_ Eu não espio, eu observo. E quando não estou lá, você me procura.
_ Como você sabe se não está lá?
_ Porque eu estou lá, observando à distância.

_ Olha pra mim e me diz que não está apaixonada por mim.
_ Eu não estou apaixonada por você.
_ Você está mentindo.

_ Vou embora
_ Não é seguro lá fora.
_ E aqui é?

_ Posso continuar te vendo?
_ Se te vir, nunca vou te deixar.

_ Você me amou?
_ Eu sempre vou te amar. Odeio te magoar.
_ E por que está magoando?
_ Porque eu sou egoísta e acho que vou ser mais feliz com ela.
_ Não vai. Vai sentir a minha falta. Ninguém vai te amar como eu.
_ Eu sei.

_ Você ainda gosta de mim?
_ Claro!
_ (chorando): Você está mentindo... Eu já estive no seu lugar...

_ Você é divino.
_ Nunca se esqueça disso.

_ Por que você se vestiu?
_ Porque acho que você vai me deixar e eu não quero estar de pijama quando isso acontecer.

_ Vai me deixar porque acha que não merece ser feliz, mas merece!

_ Me desculpe, você é...
_ Não diga isso! Não diga "você é bom demais pra mim"! Eu sou, mas não diga!

_ Eu sei quem você é. Eu te amo. Eu te amo tanto que dói.
_ Vamos comigo até o meu apartamento.
_ Eu não sou prostituta.
_ Eu não pagaria.

_ O que há de tão legal na verdade? Tente mentir pra variar.

_ Eu a amo.
_ Que pena, eu também.
_ Ela voltou pra você porque não suporta vê-lo sofrer. Você não sabe quem ela é. Você a ama como um cachorro ama seu dono.
_ E o dono ama o cachorro por fazer isso.

_ A Anna não vai ser feliz com você.
_ Ela não quer ser feliz.
_ Todo mundo quer ser feliz.
_ Não, os depressivos não querem. Querem ser depressivos pra confirmar que são infelizes. Se fossem felizes, não poderiam mais ser depressivos e teriam que encarar o mundo e viver. E isso é deprimente.

_ Você não sabe o que é o amor, porque não sabe o que é compromisso.

_ Não sou nobre o bastante pra te perdoar.

_ Obrigado.
_ Pelo quê?
_ Pela gentileza.
_ Eu sou gentil. Mando a conta pelo correio.

_ Como alguém pode ser tão decepcionante?
_ É o meu charme.

_ Quero saber tudo. Porque sou maluco.

_Você sabia?
_ Sim, mas eu queria ouvir de você.

_ Eu não te amo mais.
_ Desde quando?
_ Agora.

_ Onde está esse amor? Eu não posso vê-lo, eu não posso tocá-lo, eu não posso senti-lo. Eu só posso ouvi-lo. Eu posso ouvir algumas poucas palavras, mas não posso fazer nada com suas palavras fáceis.

_ Não quero mentir e não posso contar a verdade, então está tudo acabado.
_ Não importa. Eu te amo. Nada disso importa.
_ Tarde demais. Eu não te amo mais, adeus.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

A Mesa Voadora - Luis Fernando Verissimo


Sempre achei que as pessoas que comem como um passarinho deviam ser caçadas a bodoque.

...Falta aquele indefinível... o quê? Não sei, é indefinível.

— Que a pomba da paz lance suas dádivas sobre sua cabeça e sua roupa nova...

Isso não existe. Ou existe e eu é que tenho andado na turma errada.

Sejamos específicos, já que não podemos ser franceses.

O mâitre nos espreita de longe, certamente esperando que eu beba também a água morna com limão posta do meu lado para limpar os dedos.

Como já disse alguém sobre a Sophia Loren, é difícil dar uma ideia da opulência do prato sem usar as mãos.

O menino não sabia o que teria sido dele se não fosse a sabedoria transmitida pelos pais. Que obviamente sabiam do que estavam falando e o que era preciso para sobreviver. Estavam vivos, não estavam?

— Você já comeu alguma vez?
— Nunca. Mas adoro.

Escolhemos o menu mais barato, que até a extravagância tem limite.

Não só cortava pescoços de galinha, como fazia isto com uma certa alegria assassina.

Este hábito deixou de ser hábito, desconfio, não apenas porque hoje ninguém mais tem tempo ou disposição para frescura mas também porque não devia funcionar.

— Bom mesmo é cheiro de Vick-Vaporub!
— Bom mesmo é acordar com febre e não precisar ir à aula.

Não sei se sou só eu, mas sempre tenho a impressão de que o mâitre desaprova o meu pedido, o vinho que escolhi, o jeito que pego na faca e o tom dos meus sapatos. E também não está muito entusiasmado com a minha existência.
— Mesa para quantos?
— Do-dois... Se o senhor não se importar. Mas se preferir, eu vou embora. E desculpe qualquer coisa!

E a chuva em Paris? Não parou. Choveu todos os dias, até que resolvemos tomar uma providência. Compramos guarda-chuvas. Aí ela parou.

— Me dá uma bala.
— Não tenho.
— Um chicle.
— Não tenho.
— Me dá esse lápis para mastigar.
— Não dou.
— Deixa eu roer as tuas unhas que as minhas já acabaram.
— Não deixo.

Mas o que realmente faria o extraterrestre correr para o banheiro da nave seria descobrir que os terrestres espremem um líquido branco e gorduroso das glândulas mamárias de um animal chamado "vaca" — e o bebem!

Claro que hoje a cozinha tem recursos com os quais as feiticeiras nem sonhavam: batedeiras que só faltam brigar com as crianças, fornos verticais que caminham até você e batem no seu ombro quando o assado está pronto...

Temos remorso. A palavra "remorso" quer dizer, mais ou menos, comer de volta.
Outras espécies são autofágicas, mas só o homem desconfia que seu semelhante engolido pode começar a mordê-lo por dentro, por vingança.
Ou isto, ou a dieta está me fazendo delirar.